terça-feira, novembro 08, 2005

5 de Outubro - Por Quem os Sinos Dobram

5 de Outubro - Por Quem os Sinos Dobram
João Mattos e Silva*

O Sr. Dr. Jorge Sampaio, que é o cidadão supremo magistrado da República, no estertor do seu segundo mandato, aproveitou a «gloriosa» data do 5 de Outubro para proferir um discurso de muitas páginas – nada menos do que no Palácio da Ajuda, que foi a residência principal e emblemática dos últimos Reis de Portugal que a República exilou – sobre o significado da data e sobre a crise profunda que o regime atravessa.
Como sempre, o primeiro dos republicanos, disse algumas daquelas enormidades a que nos habituou sempre que fala da instituição a que preside, a par da descrição angustiada do estado a que, 95 anos depois, chegou o regime imposto em 1910. Sempre adjectivando com «republicano» tudo e mais alguma coisa. E sempre sem esquecer de referir a «ética republicana», que finalmente vislumbrei o que poderia ser, nos 70 candidatos autárquicos arguidos, com a Sr. Dr.ª D. Fátima Felgueiras à cabeça.

Entre algumas preciosidades que o Sr. Dr. Jorge Sampaio disse sobre o regime festejado, não posso deixar de destacar pelo seu alcance conceptual:

«A República foi, é, tem de ser, o único regime em que a sociedade civil se institucionaliza para defender o bem comum, por oposição aos regimes de dominação pessoal e aos regimes oligárquicos, nos quais o poder se organiza para impor os interesses de um déspota ou de uma minoria». O Sr. Dr. Jorge Sampaio chumbaria, por certo, num cursozito de ciência política com esta frase altissonante. O que diriam os ilustres mestres dessa ciência nas monarquias europeias, que são democracias a maior parte delas mais antigas que a democracia portuguesa, sobre a categoria em que se inserem? Regimes despóticos, regimes de oligarquia? O que dirá o socialista Presidente do Governo espanhol do regime monárquico: ditadura do Rei, oligarquia de que minoria?

«Os valores republicanos, em que assentam a democracia portuguesa e o conjunto das democracias representativas, permanecem actuais». Novo chumbito no exame. E a habitual má-fé republicana. Porque as democracias representativas não são de matriz republicana ou monárquica, embora possam coexistir com esses regimes distintos. E sobretudo porque importa não confundir deliberadamente com a mistura de república e democracia, como sinónimos, porque o não são. O Sr. Dr. Jorge Sampaio também é dos que acham que não há ditaduras em república e tenta branquear essa nódoa passando sobre o Estado Novo como se tivesse sido um regime monárquico, mesmo se os marechais Carmona e Craveiro Lopes e o almirante Tomás eram presidentes da República e até se intitulavam «Supremo Magistrado da Nação»?

«Sei que os Portugueses comungam, no essencial, dos mesmos valores e da mesma concepção sobre a República e a democracia portuguesa». Embora neste período já faça a distinção entre o regime republicano e a democracia, o Sr. Dr. Jorge Sampaio engana-se. Para além dos monárquicos, que na sua grande maioria comungam no essencial sobre a democracia, há muitos republicanos, muitos até jovens, saudosistas da república salazarista ou defensores de outras repúblicas oligárquicas (na concepção do Sr. Jorge Sampaio), de que Deus nos salve e acuda.

«Não há uma democracia forte sem um estado forte – e em verdade só há um estado forte em democracia», diz o sr. Dr. Jorge Sampaio. E aqui tem meio ponto. Porque se a primeira asserção é verdadeira a segunda não podia ser mais falsa. Se os mortos pudessem fazer-se ouvir, quão sonora seria a gargalhada do Sr. Doutor Oliveira Salazar…

Mas o discurso final do Sr. Supremo Magistrado do regime, vai para além destes conceitos e traça, a negro, o estado a que o dito regime chegou, apesar de toda «ética republicana», e da sua «solidariedade republicana» aos governos para o salvar, mesmo se a isso não é obrigado, como diz e me deixa perplexo. Quadro negro do regime que vai do descalabro das finanças públicas à falta de políticas económicas credíveis interna e externamente, da desorganização administrativa ao estado da Justiça e das Forças Armadas (que não são «uma instituição exemplar do Estado republicano», não uma guarda pretoriana do regime, mas as Forças Armadas ao serviço de Portugal), dos partidos («hoje separados da opinião pública por uma muralha», que o regime criou como são e que, feitos de outro modo, são essenciais à democracia) até à corrupção.

Nestes festejos, com direito a duas cerimónias principais e solenes e outras menores e restritas a lojas e capelinhas, o que não foi dito pelo Sr. Dr. Jorge Sampaio e outros oradores republicanos ilustres é que a República, com vetustos 95 anos, está velha, gasta, irrecuperável e merecia descansar em qualquer Prado do Repouso. E que não vale a pena tentar regenerá-la porque é irregenerável. O povo português parece passivo, mas de vez em quando desperta: foi assim com a Primeira, foi assim com a Segunda e será assim com a Terceira, mesmo sem o tinir das espadas porque, como muito bem disse o Sr. Dr. Mário Soares, candidato a mais do mesmo, estamos na União Europeia e os golpes de estado já não são possíveis. Antes assim.

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