in DN
A expressão "ir para a prateleira" é, chapado, o Portugal ineficaz. Um profissional faz carreira, chega a um patamar e um dia sabe que já não o querem mais ali. Seja porque ele atingiu o seu patamar de Peter (não exerce bem o cargo) ou porque é vítima de injustiça - não interessa, o facto é que quem de direito o quer demitir. O normal seria mandarem-no para cargo compatível com o que ele sabe fazer ou despedirem-no. Em Portugal há uma terceira via: a prateleira. A empresa, ou a repartição, poupa um pouco nos gastos, mas fica também com um peso absolutamente morto. O ex-chefe de qualquer coisa passa a ser o mais inútil dos empregados, não faz nada.
Nem de conta. É o pegar de cernelha aplicado aos nossos recursos humanos. Pegar a relação pelos cornos seria cortá-la (a relação), pagando o que a lei estipula que se pague no despedimento, ou, mais difícil e inteligente, seria patrão e empregado (já que se este subiu na carreira algum mérito há-de ter) encontrarem um novo posto, embora mais baixo, para o demitido. Mas esta última solução raramente é praticada. Porque o patrão não acredita na boa vontade do empregado rebaixado de posto ou porque o empregado não aceita ir de cavalo para burro. Daí preferir ir para a prateleira - de cavalo para carcaça de cavalo. René Debré foi primeiro-ministro antes de ser, por várias vezes, ministro. Em França não é caso único, mas por cá seria impensável. Dar a volta por cima por vezes não se consegue senão a meia altura, e quando é assim revela até uma ainda maior capacidade de combater a adversidade.
Quando Gonçalo M. Tavares, director do DN por um dia, me pediu para fazer esta crónica sobre um assunto intemporal, lembrei-me logo de escrever sobre o "ir para a prateleira". Podia pensar-se que escrevo esta crónica para que, depois de amanhã, caso ele seja convidado para cronista (ou para entrevistado ou para dar uma simples opinião), não recuse porque já foi nesta casa "sr. Director" e não aceite nada abaixo disso. Mas, na verdade, escrevo sobre "ir para a prateleira" porque é dos mais imprestáveis hábitos nacionais, de hoje, ontem e amanhã. Intemporal, como me foi pedido.
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