Foi detido militar suspeito de liderar o tiroteio à residência de Nino Vieira. Este ganhou apoios dias depois de o seu rival ter vencido as legislativas.
A Guiné-Bissau estava ontem ainda sob o choque do intenso tiroteio que surpreendeu os habitantes da capital na madrugada de domingo na residência do Presidente guineense João Bernardo (Nino) Vieira. Um grupo de militares confrontou-se com a guarda presidencial. A troca de tiros resultou num morto e vários feridos, entre elementos da guarda presidencial. "Eu pensava que não ia mais ouvir o som das armas", lamenta por telefone o cineasta Flora Gomes, que vive a 500 metros da casa do Presidente. Acordou em sobressalto à 1h, quando ouviu os primeiros tiros, que duraram "cerca de três horas". Mas a vida rapidamente regressou à calma em Bissau. "As pessoas não abandonaram a cidade como no 7 de Junho [que deu início à guerra de 1998]", acrescenta. Não houve receio. Antes "vergonha". Centenas de pessoas saíram à rua no domingo para pedir o fim da violência e o princípio de uma paz duradoura. O Governo afirmou formalmente tratar-se de uma tentativa de golpe de Estado. E a polícia, após horas de buscas, deteve ontem o fuzileiro da Marinha suspeito de liderar os militares que protagonizaram o acto, o sargento N'Tacha Ialá, disse a Lusa.
Ainda na véspera, poucas horas depois do tiroteio, o chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), general Tagmé Na Waie, declarava a situação "sob controlo" e as Forças Armadas "subordinadas ao Presidente". Alguns detidos estavam ontem a ser interrogados para esclarecer um episódio para o qual não há explicações, cenários apenas. O primeiro: o de ter sido um acto reminiscente da guerra de 1998 e 1999, protagonizado por militares descontentes com o regresso de Nino Vieira à Guiné-Bissau em 2005, depois de o terem deposto em 1998. Outra hipótese teria como pano de fundo o narcotráfico e estaria ligada ao recente afastamento do chefe de Estado-Maior da Marinha guineense Bubo Na Tchuto. O seu nome era o mais citado quando se falava de altas patentes envolvidas no narcotráfico. Era uma das figuras mais próximas do general Na Waie até sobre ele recaírem suspeitas de estar a preparar um golpe de Estado.
Foi afastado, preso, e fugiu para a Gâmbia, onde conseguiu asilo político. Esta é a versão oficial, mas a sua história é uma das muitas "mal-contadas", diz-se na Guiné-Bissau. O que pode ter acontecido então? Uma possível vingança dos militares próximo dele, e que terão perdido com o seu afastamento.
Uma encenação? Também não se exclui na capital guineense que este "golpe" tenha sido encenado para dar força a um Presidente enfraquecido. O tiroteio acontece menos de dois dias após a divulgação dos resultados das legislativas, nas quais o PAIGC, ligado historicamente a Nino Vieira, mas que este recusou apoiar, ganhou uma inédita maioria de dois terços na Assembleia, ganhando 67 dos 100 lugares. Em contraste, o PRID de Aristides Gomes apenas conquistou três lugares. Uma derrota para o Presidente, que escolhera Aristides Gomes para primeiro-ministro quando demitiu Carlos Gomes Júnior, e agora era conotado com essa candidatura. O Partido para a Independência e o Desenvolvimento (PRID) foi criado este ano. Pelos recursos de campanha que ostentou e as ofertas às populações que fez, na Guiné chamam-lhe o PRID - Partido Responsável pela Introdução da Droga, numa alusão às acusações de que vários partidos usaram os recursos do narcotráfico. O PRS do antigo Presidente Kumba Ialá conquistou 28 assentos.
Algumas atenções centraram-se no ex-Presidente. Mas poucos são os que acreditam na hipótese de haver ligação de Kumba Ialá ao tiroteio. Pode haver sim, e esse é outro cenário colocado por analistas em Bissau, "agitação nas hostes próximas de Ialá" pelos discursos inflamados deste contra Nino. Nas eleições de 16 de Novembro, os guineenses afluíram com entusiasmo e em massa. Mais de 70% dos eleitores votaram. E nesse voto, deram um "sinal claro" de querer paz, democracia e estabilidade, afirma Laudolino Medina, de uma associação do movimento da sociedade civil que organizou a marcha pela paz em Bissau. "O resultado das eleições foi o sinal de que os guineenses estão com vontade de mudar as coisas."
Depois de condenar "firmemente" o acto, a Comunidade Económica das Estados da África Ocidental (CEDEAO) enviou uma missão esperada ontem à noite em Bissau. No domingo, o Senegal fez avançar tropas para a fronteira e ofereceu-se para organizar uma conferência internacional sobre a Guiné. Disponibilizou um avião para retirar do país o Presidente e a família. Entre os países cada vez mais influentes em Bissau, Angola também se ofereceu para acolher Nino Vieira e a família. Vieira regressou em 2005 com a anuência do CEMGFA, contrariando o que seria a vontade predominante nos quartéis. Foi reeleito nas presidenciais desse ano e demitiu da chefia do Governo Carlos Gomes Júnior (com quem se incompatibilizara). Agora é de novo este adversário que o Presidente tem perante si. Mas desta vez com a força de uma maioria de dois terços. Nestes três anos, o Presidente perdeu influência. Controla as forças da Segurança do Estado mas não totalmente as Forças Armadas, maioritariamente de etnia balanta, que convive mal com ele. Mesmo assim, Forças Armadas e presidência têm-se acomodado. Como pano de fundo: o narcotráfico, que, chegou a dizer-se, poderia dar estabilidade à Guiné-Bissau enquanto beneficiasse militares e altas figuras do Estado.
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