Com a devida vénia ao jornal i
O único motivo que poderia levar José Eduardo dos Santos a sujeitar-se ao escrutínio popular e a todas as coisas mesquinhas e desagradáveis que, para alguém como ele, tal processo implica, seria conseguir o respeito da comunidade internacional.
Na passada quinta-feira, dia 21, o partido no poder em Angola fez aprovar um novo projecto de constituição que prevê a eleição do Presidente da República pela Assembleia Nacional e não mais através do voto popular, em eleições directas, o que em princípio assegurará a permanência no poder de José Eduardo dos Santos. Os deputados da UNITA, o principal partido da oposição, abandonaram a sala antes da votação.
Várias vozes se ergueram em Angola e no exterior a contestar a futura constituição. Marcolino Moco apelou à idoneidade dos juízes do Tribunal Constitucional, esperançado ainda no chumbo de uma constituição que classificou como absurda, palavras duras, sobretudo se atendermos ao facto de terem sido proferidas por alguém que já foi secretário-geral do MPLA e primeiro-ministro. Nelson Pestana, dirigente do Bloco Democrático, pequeno partido de esquerda, herdeiro da extinta Frente para a Democracia, anunciou o fim do Estado de Direito: "O Estado de Direito desaparece para dar lugar ao livre-arbítrio do Príncipe, em todas as suas declinações. Na melhor das hipóteses, teremos um Estado administrativo que vai reprimir a liberdade e promover a igualdade dos indivíduos perante o Príncipe, para que o possam melhor servir."
A eurodeputada portuguesa Ana Gomes, num comentário recolhido pelo diário "Público", sugere que José Eduardo Santos ficou numa posição difícil depois da vitória esmagadora - demasiado esmagadora - do MPLA. Por um lado, não gostaria de ter menos votos do que o seu partido. Por outro, se tivesse mais, no caso mais de 82%, dificilmente conseguiria ser levado a sério fora do país. Devíamos, talvez, começar por aqui. O único motivo que poderia levar José Eduardo dos Santos a sujeitar-se ao escrutínio popular, e a todas as coisas mesquinhas e desagradáveis que, para alguém como ele, tal processo implica, incluindo discursos em comícios, banhos de multidão e entrevistas, seria conseguir o respeito da comunidade internacional. José Eduardo dos Santos está um pouco na situação do escritor brasileiro Paulo Coelho, o qual depois de conquistar milhões de leitores, depois de enriquecer, ambiciona agora ser levado a sério como escritor. Quer o respeito dos críticos.
A diferença é que José Eduardo dos Santos, não tendo o respeito da comunidade internacional, começa a beneficiar do temor desta - o que para um político pode ser algo bastante semelhante. O crescimento económico de Angola, por pouco que seja, e ainda que afectado por distorções de todo o tipo, representa uma garantia de bons negócios para um vasto grupo de empresas multinacionais. A prosperidade de Angola é uma boa notícia também para os jovens quadros portugueses no desemprego. Favorece, aliás, todo o tipo de sectores. Lembro-me de ter lido há poucas semanas uma notícia segundo a qual dezasseis por cento dos produtos de luxo vendidos em Portugal são adquiridos por cidadãos angolanos.
Há uns dois anos almocei num simpático restaurante da Ilha de Luanda com um diplomata português. Antes de chegarmos à sobremesa já ele me dava conselhos: "Você só tem problemas porque fala de mais", assegurou-me. "Escreva os seus romances mas não ataque o regime. Não há necessidade." Depois disso tenho escutado conselhos semelhante vindos de editores, empresários e políticos portugueses.
"Já não posso ouvir o José Eduardo Agualusa e todos os outros portugueses e angolanos cá em Portugal que não se cansam de denunciar os desmandos e a corrupção do governo angolano", escreveu Miguel Esteves Cardoso numa extraordinária crónica, publicada nas páginas do jornal "Público" a 30 de Outubro de 2009, e depois reproduzida no "Jornal de Angola": "Angola é um país soberano; mais independente do que nós. [...] Os regimes políticos dos países mais nossos amigos são como os casamentos dos nossos maiores amigos: não se deve falar deles. [...] Não são só nossos amigos: são superiores a nós."
No meu último romance, "Barroco Tropical", esforcei-me por expor a forma como, em regimes totalitários, o medo vai pouco a pouco corrompendo as pessoas, mesmo as melhores. O medo é uma doença contagiosa capaz de destruir toda uma sociedade. Mais extraordinário é perceber como um regime totalitário consegue exportar o medo. Não já o medo de ir para a cadeia, é claro; ou o medo de ser assassinado na via pública durante um suposto assalto. Trata-se agora do medo de perder um bom negócio. Do medo de ofender um cliente importante. Ver dirigentes políticos portugueses, de vários quadrantes ideológicos, a defenderem certas posições do regime angolano com a veemência de jovens aspirantes ao Comité Central do MPLA seria apenas ridículo, não fosse trágico.
Alguns deles, curiosamente, são os mesmos que ainda há poucos anos iam fazer piqueniques a essa espécie de alegre Disneylândia edificada pela UNITA no Sudeste de Angola, a Jamba, vestidos à Coronel Tapioca, e que apareciam em toda a parte a anunciar Jonas Savimbi como o libertador de Angola. José Eduardo dos Santos decidiu fazer-se eleger pelo parlamento, por mais cinco anos, por mais dez anos, troçando da democracia, por uma razão muito simples: porque pode. Porque já nem sequer precisa de fingir que acredita nas virtudes do sistema democrático. Enquanto Angola der dinheiro a ganhar, aos de fora e aos de dentro, e mais aos de fora que aos de dentro, como sempre aconteceu, ninguém o incomodará. Para isso, para que Angola continue a dar dinheiro, exige-se alguma estabilidade social, sim, mas não democracia. Democracia é um luxo.
Bem pode Ana Gomes manifestar a sua indignação. Mais facilmente os dirigentes do partido que representa a admoestarão a ela, por ter tomado tal posição, do que incomodarão os camaradas angolanos. Aos angolanos resta a esperança de que o crescimento económico possa contribuir para a formação e o regresso de jovens quadros. Estes, juntamente com uma mão-cheia de jornalistas independentes, de activistas cívicos, de militantes de pequenos partidos, todos juntos, talvez consigam criar um amplo movimento social capaz, a médio prazo, de vencer o medo e de transformar Angola numa verdadeira democracia.
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